Início Cotidiano Há cinco anos em Cuiabá, haitiano sonha em integrar orquestra

Há cinco anos em Cuiabá, haitiano sonha em integrar orquestra

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Rony Guerisma deixou faculdade de Medicina no Haiti e faz aulas de piano e saxofone em projeto social
Protásio de Morais/Arquivo Pessoal
Universitário, Rony Guerisma se dedica às aulas de saxofone

BRUNA BARBOSA
DA REDAÇÃO
Morando em Cuiabá há cinco anos após um terremoto atingir o Haiti, em 2010, o haitiano Rony Guerisma, de 36 anos, encontrou uma oportunidade de realizar um sonho de infância: fazer parte de uma orquestra profissional.

Além de cursar Engenharia de Produção, Rony se dedica a aulas de piano e saxofone através do Programa de Ação Social da Unimed Cuiabá (PróUnim).

“Desde criança, quando ia à igreja com meus pais e via o pessoal tocando, falava que queria tocar também, mas as coisas são muito difíceis no meu país. Não existe nada de graça”, lembrou.

A oportunidade de fazer as aulas de música do projeto social surgiu por acaso.

Rony, que é responsável por operar a máquina de engarrafar cervejas e refrigerantes em uma empresa de bebidas, das 22h às 7h, viu uma propaganda sobre aulas gratuitas de música enquanto assistia televisão, depois de chegar do trabalho.

Animado com a oportunidade de realizar o sonho, o haitiano se arrumou no mesmo momento e foi até o local indicado na propaganda. Chegando lá, foi informado de que as aulas eram apenas para crianças.

Fazia faculdade de Medicina lá [no país], mas quando teve o terremoto, tudo ficou destruído. Nós sobrevivemos por um milagre, muitas pessoas morreram ou perderam tudo
Quando estava pronto para ir embora, uma nova chance encheu o haitiano de esperança. Uma atendente do local contou a Rony que o programa também oferecia aulas gratuitas de música para adultos. Desde então, ele pratica as técnicas do saxofone e piano.

“Faço as aulas desde agosto de 2018. Também fizemos uma apresentação de encerramento de ano, onde toquei piano. Meu sonho é chegar a uma orquestra profissional. Vou me esforçar até chegar lá um dia. Se Deus quiser, vou conseguir”, disse.

Haiti x Brasil

O haitiano contou que a casa da família em Gonaives foi completamente destruída durante o abalo sísmico que provocou 220 mil mortes e deixou 1,2 milhão de pessoas desabrigadas no Haiti, considerado o país mais pobre da América Latina.

Antes da vida de Rony ser atravessada pela passagem do terremoto, ele cursava medicina no Haiti. Com o cenário de destruição causada pelo tremor, além da extrema pobreza do país, o haitiano foi obrigado a deixar a faculdade e a família.

“Fazia faculdade de Medicina lá [no país], mas quando teve o terremoto, tudo ficou destruído. Nós sobrevivemos por um milagre, muitas pessoas morreram ou perderam tudo”, lembrou.

O pai de Rony precisou fazer um empréstimo para arcar com os gastos da viagem do Haiti para o Brasil. Antes de desembarcar em Cuiabá, o haitiano passou pelo Acre.

“Quando cheguei, fui acolhido pela Casa do Migrante, onde fiquei por sete dias. Um dia, um empresário foi até lá. Ele queria contratar funcionários para a empresa dele”, contou.

Como o empresário não falava o idioma dos haitianos, Rony ficou responsável por fazer a tradução. Dias depois foi contratado para o cargo que ocupa até hoje.

“Muitas pessoas deixaram o emprego desde que eu entrei lá [na empresa]. Como minha vida é muito corrida, o horário de trabalho é o que mais se encaixa na minha rotina”, contou Rony, que vai à faculdade pelas manhãs, faz as aulas de música duas vezes por semana durante a tarde e trabalha durante a madrugada.

Bruna Barbosa/MidiaNews

Rony Guerisma
Rony faz aulas de piano graças a um programa social na Capital

Sem negatividade

Para ele, a correria do dia-a-dia evita que ele tenha “pensamentos negativos”. Quando não é dia de ir às aulas de música, Rony contou que passa o dia na biblioteca da universidade, estudando.

Como os livros do curso são caros, o haitiano não possui condições financeiras para adquiri-los.

Para conseguir se matricular no curso de Engenharia de Produção, Rony precisou recorrer ao Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). Atualmente no 9º semestre da graduação, faltando apenas seis meses para conseguir o diploma, o haitiano começou a enfrentar problemas.

“Pediram que todos os beneficiários do Fies apresentassem o nome de um fiador. Fiquei desesperado, porque não tenho ninguém aqui no Brasil para fazer isso por mim. Quando fiz a matrícula, não pediram nada disso”, desabafou.

Entre o trabalho, a faculdade e as aulas de música, Rony também luta para construir sua própria casa, no Bairro Novo Tempo, em Várzea Grande, região metropolitana da Capital.

Orgulhoso, contou que ele mesmo tem construído seu “barraco” e já possui um quarto para dormir.

“Estou construindo aos poucos, também conto com a ajuda de um pedreiro para me ajudar. Construir uma casa não é fácil”, avaliou.

Vida no Haiti

Além de cursar Medicina, Rony dava aulas particulares de literatura, francês, espanhol e inglês, no Haiti. Ele contou que os outros irmãos também trabalhavam para ajudar no sustento da família.

“A casa era cheia, mas sempre todos estavam se movimentando, indo ou voltando do trabalho”, lembrou.

Com a impossibilidade de continuar vivendo no país, o pai de Rony fez um empréstimo de R$ 7 mil para que ele conseguir se mudar para o Brasil.

“Quando cheguei aqui [em Cuiabá], logo comecei a trabalhar para conseguir ajudar meu pai a pagar a dívida”, contou.

Quando recebe o salário, Rony costuma guardar uma parte do dinheiro, até conseguir ter uma quantia razoável para trocar por dólares e enviar à família.

Protásio de Morais/Arquivo Pessoal

Rony Guerisma
Rony diz que sonho é entrar para uma orquestra

“O dólar é muito caro. Quando recebo tiro uma parte e vou guardando até conseguir uns 200 dólares e mandar para meus pais”, disse.

Sozinho no Brasil, já que a família de Rony continua morando no Haiti, ele contou que sente falta dos irmãos e dos pais.

“Meu irmão chegou a morar no Brasil um tempo, mas decidiu voltar para o Haiti, porque sentia muita falta da esposa e do filho. Cheguei a insistir para ele ter paciência até conseguir trazê-los, mas ele foi embora”, lembrou.

Racismo

“Sempre você vai achar um grupo ‘desse jeito’, mas a gente se acostuma, entendeu?”, falou Rony sobre as situações de preconceito que precisa enfrentar. Sempre otimista, o universitário disse acreditar que para cada pessoa ruim, existe uma boa.

“Já encontrei muita gente ruim nessa vida, mas também conheci muitas pessoas boas. A vida é assim mesmo, ninguém é 100% bom”, continuou.

Sobre os vínculos de amizade no Brasil, Rony contou que prefere não perder tempo com pessoas que não possuam um conhecimento intelectual.

“Meu tempo é muito curto. Prefiro fazer amizade com pessoas que tenham sabedoria. Por exemplo, se alguém conversa comigo sobre a história do Brasil, sempre vou querer conversar mais, para saber mais. Se fica só falando ‘besteira’, não ligo”, disse.

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