Fonte: Gazeta Digital, créditos da imagem: Nosso Biomas/TV Brasil
Segundo dados do MapBiomas, Mato Grosso lidera o ranking nacional de área queimada acumulada nos últimos 40 anos. Em 2024, a Amazônia foi o bioma mais atingido, com 17,9 milhões de hectares consumidos, o maior número desde o início da série histórica, em 1985. Pela primeira vez, a área de floresta queimada (6,7 milhões de hectares) superou a de pastagens (5,2 milhões), representando 43% e 33,7%, respectivamente, da vegetação afetada.
No Cerrado, 9,7 milhões de hectares foram queimados no mesmo ano, sendo que 85% dessa área corresponde à vegetação nativa. Apesar de o fogo ser parte da ecologia natural do bioma, especialistas alertam para a alteração no regime do fogo, com queimadas mais frequentes, intensas e fora de época. Paradoxalmente, 55% do Cerrado não sofreu queimadas ao menos uma vez em 40 anos, o que compromete seu ciclo ecológico.
Já o Pantanal, mesmo com área absoluta menor, registrou a maior proporção relativa de queimas no país: 61,8% de sua superfície foi afetada pelo fogo entre 1985 e 2024, revelando a vulnerabilidade de um ecossistema que historicamente dependia do ritmo das águas para se proteger das chamas.
A mudança no regime do fogo, conjunto de características que determinam como o fogo se manifesta em uma paisagem, como frequência, intensidade, área afetada e sazonalidade – é um fenômeno crescente e desigual entre os biomas. No Cerrado, o fogo sempre teve papel ecológico relevante; no Pantanal, era controlado pelas cheias; e na Amazônia, era praticamente ausente em florestas intactas.
Essas alterações são resultado da pressão humana, mudanças climáticas e uso inadequado do fogo, o que desregula dinâmicas ecológicas essenciais à preservação ambiental. A continuidade desse cenário representa sérios riscos não apenas para os ecossistemas e comunidades locais, mas também para a estabilidade climática em escala nacional.
Cerrado
O Cerrado é um bioma naturalmente adaptado e dependente do fogo. Muitas espécies vegetais precisam do calor para germinar, rebrotar ou florescer, e os ciclos naturais de fogo, com intervalos de dois a cinco anos, ajudam a manter a biodiversidade. No entanto, o problema no Cerrado atual não é a presença do fogo, é o descontrole sobre como, quando e
com que frequência ele ocorre.
Hoje, as queimadas são muitas vezes provocadas por manejo inadequado, incêndios acidentais ou criminosos, e ocorrem com frequência muito maior do que o ecossistema pode suportar. Isso enfraquece a vegetação nativa e favorece a invasão por gramíneas exóticas, que alteram o combustível do solo e aumentam a inflamabilidade.
Alessandra Fidelis, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Rio Claro e especialista na ecologia do fogo, alerta que os regimes de fogo no Cerrado encontram-se alterados, como por exemplo em épocas inadequadas, afetando assim a regeneração das espécies nativas. Ela defende que o manejo do fogo deve seguir tanto os princípios ecológicos, respeitando os tempos de regeneração da vegetação, como os saberes tradicionais do uso do fogo.
”O problema do Cerrado não é o fogo em si, mas quando, onde e como ele ocorre: tanto queimar demais como não queimar podem trazer consequências igualmente prejudiciais para a biodiversidade”, aponta Fidelis.
Mário Barroso, coordenador de monitoramento da The Nature Conservancy Brasil (TNC Brasil), comenta como o MapBiomas, uma iniciativa colaborativa que mapeia a cobertura e o uso da terra no Brasil e em outros países da América do Sul, com base em imagens de satélite e tecnologias de sensoriamento remoto, tem sido fundamental para aprimorar a gestão
ambiental.
“Ter informações claras sobre o regime de fogo sempre foi um desafio. Hoje com o MapBiomas temos uma visão muito mais clara das transformações do regime do fogo nos biomas e de como devemos orientar as políticas públicas e o engajamento das pessoas para tratar desse tema”, afirma Barroso.
Manejo Integrado do Fogo
O Manejo Integrado do Fogo (MIF) é uma estratégia que reconhece que o fogo, em vez de ser apenas combatido ou proibido, pode ser usado de forma controlada e planejada como ferramenta de manejo ambiental, redução de risco e conservação. Ao contrário de abordagens tradicionais, que focam apenas no combate a incêndios, o MIF busca equilibrar prevenção, uso ecológico e resposta rápida.
O MIF é adotado em países como EUA, mas enfrenta desafios para ser implementado no Brasil, especialmente por causa das
particularidades de cada bioma. A pesquisadora Natashi Pillon está começando um experimento para adaptar o MIF para o Cerrado, especialmente com foco na conservação da biodiversidade. O projeto reconhece os avanços do MIF na proteção de áreas sensíveis e visa, em conjunto com os gestores, avançar na lapidação da prática para fins de conservação e proteção da biodiversidade de espécies e ecossistemas dependentes do fogo.
Natashi destaca que os modelos de Manejo Integrado do Fogo (MIF) atualmente aplicados no Brasil ainda enfrentam desafios para alcançar resultados mais amplos em termos de conservação. Embora muitos enfoquem aspectos importantes como a redução de combustível e a proteção de áreas agrícolas, ainda há espaço para avanços na incorporação do papel ecológico do fogo e das necessidades específicas de cada bioma.
“O Cerrado demanda um manejo do fogo que respeite sua dinâmica ecológica singular. Modelos utilizados em países do hemisfério norte oferecem aprendizados valiosos, mas não podem ser aplicados diretamente sem adaptações. Estamos construindo uma abordagem contextualizada considerando o conhecimento acumulado dos gestores e equipe de manejo,
com foco na biodiversidade, pois ela é essencial para que o Manejo Integrado do Fogo (MIF) cumpra plenamente seu propósito” explica a pesquisadora.
Pantanal
O Pantanal sempre foi regulado pelo pulso das águas. Os ciclos anuais de cheia e seca determinavam quando e onde a vegetação secava. Esse equilíbrio, no entanto, vem sendo profundamente alterado. Cheias mais curtas, irregulares ou até ausentes em algumas regiões têm permitido o acúmulo de biomassa seca em áreas antes permanentemente alagadas.
A alteração desse regime hídrico tem sido um fator-chave para o agravamento dos incêndios florestais no Pantanal, ao romper o equilíbrio entre períodos de cheia e seca que historicamente regulavam a dinâmica da vegetação e do fogo. Com cheias cada vez mais curtas, irregulares ou ausentes, áreas que antes permaneciam alagadas por longos períodos agora acumulam grande quantidade de matéria orgânica seca, criando um ambiente altamente inflamável.
Esse cenário reduz a umidade do solo e da vegetação, prolonga a estação seca e favorece a propagação do fogo mesmo em regiões que antes resistiam naturalmente às chamas. O colapso desse ciclo hídrico transforma o bioma em uma paisagem mais vulnerável e permanentemente suscetível a incêndios de maior intensidade e duração.
Responsável por liderar as estratégias institucionais de prevenção e combate a incêndios, Leonardo Gomes, diretor executivo do SOS Pantanal, tem defendido a adoção e fortalecimento do Manejo Integrado do Fogo (MIF) no bioma. “Temos avançado na implantação do Manejo Integrado do Fogo, mas ainda precisamos de investimentos expressivos em prevenção, especialização de profissionais, pesquisa e infraestrutura.
A adoção desse conceito exige um trabalho conjunto entre sociedade civil, instituições de pesquisa e poder público. Não estamos perdendo só árvores ou animais com os incêndios. Estamos perdendo um patrimônio natural que regula o clima, sustenta comunidades inteiras e nos conecta com o futuro. Se o Pantanal continuar queimando nessa escala, vamos sentir
os impactos muito além da fronteira do bioma.”
Amazônia
Na Amazônia mato-grossense, onde o fogo historicamente não fazia parte do ciclo natural, as queimadas estão se tornando mais recorrentes e resistentes. A porção amazônica de Mato Grosso é caracterizada por florestas densas, com alta umidade e um dossel fechado que, historicamente, dificultava a ocorrência de incêndios. Esse equilíbrio, no entanto, vem sendo quebrado principalmente pela expansão de pastagens plantadas, que impulsiona o desmatamento, ação que abre caminho para a fragmentação florestal e agrava a vulnerabilidade da vegetação ao fogo. A intensificação das secas, associada às mudanças climáticas, contribui ainda mais para a permanência e propagação dos incêndios nessas áreas.
Hoje, áreas onde a floresta ainda permanece de pé estão sendo atingidas pelo fogo. Nessas regiões, a presença de matéria orgânica acumulada e o ressecamento das bordas florestais aumentam a inflamabilidade, mas a queima só ocorre quando há um foco de incêndio externo. Ou seja, não se trata de combustão espontânea. O resultado é o aumento de florestas degradas na paisagem